Em 5 de junho de 2022, o jornalista britânico Dom Phillips e o indigenista Bruno Pereira foram brutalmente assassinados na região do Vale do Javari, na Amazônia; Phillips investigava a pesca ilegal na região para o seu livro.
Três anos depois, o livro Como salvar a Amazônia — Uma busca mortal por respostas, de Phillips com colaboradores, será lançado a partir de 31 de maio no Reino Unido, nos Estados Unidos e no Brasil, com eventos nos três países.
“Emocionalmente, tem vários sentidos para mim. Primeiro porque é como eu realizar a morte do Dom, porque ali ele ainda escrevia, ele ainda estava vivo”, conta Alessandra Sampaio, viúva de Phillips, à Mongabay.
A antropóloga Beatriz Matos, viúva de Pereira, diz que o livro também se entrelaça com o trabalho de Pereira e com todos os que atuam na defesa da Amazônia e dos povos indígenas: “é muito importante que esse trabalho não seja interrompido. É muito importante que as histórias que ele estava contando sejam contadas”.
“Não se pode parar um importante trabalho jornalístico e de qualidade”. Essa foi a principal motivação de Alessandra Sampaio, viúva do jornalista Dom Phillips, para unir forças com os amigos do marido e finalizar o livro que ele começou a escrever antes de ser assassinado em 2022. “Logo que aconteceu a tragédia, ficou bem claro para mim e eu acho que também com os amigos jornalistas [do Dom], de quem eu tive muito e, que era importante finalizar o livro”, diz Sampaio em entrevista por vídeo para a Mongabay.
Em 5 de junho de 2022, Phillips e o indigenista Bruno Pereira foram brutalmente assassinados na região do Vale do Javari, na Amazônia brasileira. Phillips investigava a pesca ilegal na área, numa viagem que, segundo Sampaio, seria a penúltima para concluir seu livro.
Próxima à tríplice fronteira Brasil-Colômbia-Peru, a região do Vale do Javari é uma área dominada pelo crime organizado, tráfico de drogas, extração ilegal de madeira e caça predatória. É a segunda maior terra indígena do Brasil — com 8,5 milhões de hectares, duas vezes o tamanho da Suíça — e abriga cerca de 17 povos indígenas isolados, com pouco ou nenhum contato com o mundo exterior.

Três anos depois, o livro Como salvar a Amazônia — Uma busca mortal por respostas, de Phillips com colaboradores, será lançado a partir de 31 de maio no Reino Unido, nos Estados Unidos e no Brasil, com eventos nos três países.
“Emocionalmente, tem vários sentidos para mim. Primeiro porque é como eu realizar a morte do Dom, porque ali ele ainda escrevia, ele ainda estava vivo”, diz Sampaio, em lágrimas. “E ele me contava algumas histórias que estão no livro, então eu volto no tempo e eu reconheço ali toda a paixão do Dom pela pela Amazônia, a curiosidade dele”.
Para ela, o livro resume a essência e o apelo ao trabalho coletivo e colaborativo para salvar a Amazônia, destacado pelo próprio autor na introdução: “As pessoas precisam aprender com os povos indígenas que só o pensamento coletivo, comunitário — e não a ganância individual — pode salvar a Amazônia. Precisamos nos unir, não nos separar”, escreveu Phillips.
Respeitando o tempo do luto, Sampaio reuniu todo o material que Phillips havia deixado: computador, HDs externos e seus “famosos caderninhos” com as anotações dele. Ele era muito organizado, ela diz, com alguns parágrafos bem definidos; outros ainda em forma de ideias.

“Naturalmente, esse grupo foi sendo articulado e foi muito bom porque eu me senti muito amparada pela experiência, pelo contato cuidadoso deles, pelo entendimento de que eles iam contribuir com o livro do Dom, mas o livro era do Dom. Foi muito bacana”, diz Sampaio. Essa iniciativa também acompanhou uma campanha de solidariedade e de financiamento coletivo para concluir o livro, acrescenta.
Phillips tinha uma “capacidade muito rara de escuta” e abertura para conversar com quem defendia a floresta e também com quem atuava em atividades ilegais, “tentando não pré-julgar”, algo que era “uma enorme inspiração”, segundo Sampaio. Ele também era muito sociável e “conseguia se conectar de uma forma tão bonita às pessoas”. Para ela, o formato colaborativo do livro é a “é a essência da própria afirmação e da própria crença do Dom”.
Phillips deixou cerca de um terço do livro escrito. “Os outros capítulos, por mais que tenham seguido as ideias do Dom, cada um tem um estilo, tem uma vivência, então achei assim um apanhado muito bonito de outras formas de escrever, de outras experiências, experiências, outros estilos”.
Mas, ela ite, não foi fácil ler o livro inteiro. “Quando acabam os capítulos dele, eu demorei um tempo para conseguir ler o livro, foi um choque também”.
Continuidade do trabalho de Phillips e coragem de Sampaio
Em junho de 2022, Phillips e Pereira foram mortos a tiros em uma área remota do estado do Amazonas, onde investigavam pesca ilegal e caça predatória. Seus corpos foram encontrados dez dias depois.
Para Beatriz Matos, viúva de Pereira, a ideia de que a morte de Phillips teria sido um “efeito colateral” do trabalho de Bruno não é verdadeira. Para ela, ambas as mortes representam a “interrupção de um trabalho de proteção, de defesa da Amazônia, de defesa dos povos indígenas”. Ela destaca que o trabalho de Phillips era “muito importante, assim como o do Bruno”, por ser um jornalista que mostrava tudo isso ao mundo.


O lançamento do livro, diz Matos, representa “a continuidade do trabalho do Dom, representa a coragem da Alessandra, representa a força da Alessandra, representa a força do trabalho do Dom”. Para ela, “é muito importante que esse trabalho não seja interrompido. É muito importante que as histórias que ele estava contando sejam contadas”.
Matos diz que o livro também está diretamente conectado com o trabalho de Bruno e também com todos que trabalham para defender a Amazônia e os povos indígenas. “Eu sei que vai ter essa dimensão do trabalho do Bruno ali sendo mostrado também. É super importante”, diz ela à Mongabay em uma entrevista em vídeo. “A Alessandra sempre fala que, desde que o Dom conheceu o Bruno, que ele ficou muito impressionado com Bruno, que o Dom sempre falava do Bruno”.
Por outro lado, diz Matos, Pereira também respeitava muito o trabalho de Phillips, que era uma pessoa importante para ele. Ela se lembra das últimas palavras de Pereira por telefone antes da viagem fatal de barco: “Eu terminei minha missão que eu tinha que fazer, mas eu vou acompanhar o Dom, ele vai fazer umas entrevistas e tal, mas vão ser três, quatro dias só e aí eu volto”.
“O que eu sei é que [Phillips] era um cara importante para ele [Pereira], um cara tão importante que ele fez questão de ele mesmo acompanhar o Dom na reportagem”, diz Matos. Pereira cursou jornalismo, acrescentou, mas abandonou a universidade para ir trabalhar no interior do Amazonas, antes de ir para Funai. “Ele tinha também uma percepção muito clara disso, da importância de procurar bons repórteres, de falar com a imprensa. A gente brincava que ele tinha essa coisa de fazer uma certa assessoria de comunicação dos isolados”.
Matos, antropóloga com mais de 20 anos de trabalho de campo no Vale do Javari — onde conheceu Bruno — diz que também “se vê” no livro. “Eu acho que tem muita coisa do Bruno ali, acho que também do ponto de vista do meu trabalho também. Eu também trabalho na região há muitos anos, então eu também me vejo. Vai ser incrível, assim, estou doida para ler”.

Continuando o legado de Phillips e Pereira
Tanto Sampaio quanto Matos afirmam que estão comprometidas em continuar o legado de seus maridos.
Desde fevereiro de 2023, Matos coordena o departamento de proteção territorial e de povos indígenas isolados e de recente contato no Ministério dos Povos Indígenas (MPI). “O trabalho, o desafio também mantém a gente viva”, diz ela. Pereira trabalhou por muitos anos na Funai, coordenando o departamento de indígenas isolados e de recente contato.
“A gente se conheceu e se apaixonou lá [ [no Vale do Javari] e por causa de lá também”, diz Matos. “Eu e Bruno, a gente fez uma parceria de vida, de tudo e de trabalho também, sobretudo nessa questão [do Vale do Javari]. Nossos filhos têm nomes de indígenas de lá, a gente tem uma casa lá”.
Ela conta que assumiu o cargo no MPI para continuar defendendo essa causa: “Vai ser uma oportunidade incrível para a gente fazer tudo que a gente estava planejando antes. E quando eu falo a gente, é eu e Bruno”. Tal decisão, acrescenta, também inclui a continuidade do trabalho de parceiros da Funai e de outros órgãos governamentais e do Observatório dos Povos Isolados (OPI). “A gente a gente assumiu esses postos no no governo pensando num trabalho coletivo, num projeto do que a gente vem fermentando há muito tempo. Com certeza, se o governo estivesse vivo, ele estaria na Funai ou no Ministério dos Povos Indígenas”.
Em 29 de maio de 2024, Sampaio lançou o Instituto Dom Phillips, uma ONG dedicada a amplificar as vozes da Amazônia e o saber dos povos originários, por meio da educação. “O caminho que a gente escolheu foi o caminho da educação, nesse movimento de tentar engajar as pessoas pela mudança de pensamento, mudança de consciência”, diz Sampaio. “O compromisso do Instituto Dom Phillips é seguir com o legado dele, tentando ampliar esse legado — porque ele não teve tempo para fazer isso — ecoando as vozes da Amazônia e o conhecimento dos povos, o conhecimento ancestral dos povos e dos defensores da Amazônia”.

De acordo com Sampaio, o instituto também está alinhado com a concepção inicial do livro de Phillips de focar em soluções para proteger a Amazônia a partir da própria floresta. Ela conta que Phillips sempre voltava “encantado” de suas viagens de reportagem, dizendo que se as pessoas conhecessem a Amazônia, toda a sua beleza, seu potencial e toda a sabedoria de seus povos, elas se conectariam natural e efetivamente com a Amazônia e se engajariam na causa da proteção. “Esse é o caminho que a gente quer navegar com o instituto: ter mais uma frente para trabalhar esse desconhecimento que ainda se tem sobre a Amazônia, porque a gente só pode cuidar do que a gente conhece”.
O primeiro projeto do instituto, “Amazônia, coisa linda”, leva o nome da última publicação de Phillips nas redes sociais. O projeto está sendo implementado no Vale do Javari com jovens comunicadores da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (UNIVAJA).
Sampaio diz estar profundamente impressionada com a cosmovisão dos povos indígenas, que é outra visão de mundo. “ Eu acho que, finalmente, que eu estou vivendo tudo isso que eu vi na Amazônia através dos olhos do Dom. Eu não conhecia a Amazônia antes da morte do Dom. E ele sempre voltava muito encantado. Então, esse encantamento eu estou podendo viver agora. Apesar dessa tragédia, eu tenho o privilégio de ter esse contato, essa confiança dos povos, não só amazônicos, mas das comunidades tradicionais e fazer essa troca que a gente tem muito o que aprender com eles”.
‘Tio Dom e tio Bruno’
Em novembro de 2024, autoridades concluíram as investigações, apontando Ruben Dario da Silva Villar, conhecido como “Colômbia”, como mandante do duplo homicídio. Ele é acusado de financiar e armar os executores para matar Phillips e Pereira e ocultar seus corpos. Villar nega as acusações.
Desde o início da investigação, outras oito pessoas foram indiciadas. Três réus — Amarildo da Costa de Oliveira (“Pelado”), Jefferson da Silva Lima e Oseney da Costa de Oliveira — foram reunidos em um único processo. Em setembro de 2024, Oseney foi excluído do processo por decisão judicial, e o Ministério Público Federal recorreu.

Segundo o advogado de Sampaio, Rafael Fagundes, Pelado e Lima podem ir a júri popular ainda este ano “se não tiver nenhum fato extraordinário”. Já o caso de Oseney é imprevisível.
“Eu acredito na justiça, realmente. Eu acho que esse caso vai ser julgado exemplarmente, porque tem que ser. O tempo da justiça, infelizmente, não é o tempo das famílias, [e] não sou só eu. Mas eu sigo acreditando na justiça, de que os responsáveis vão ter que responder”, diz Sampaio. E justiça, acrescenta, também está ligada à proteção das pessoas que continuam sendo ameaçadas na região do Javari.
Matos concorda. Para ela, a justiça é mais lenta que o esperado, mas é fundamental que o crime não fique impune não só do ponto de vista da justiça assim, mas também que o crime não seja esquecido porque é “um absurdo que não pode se repetir”,
O sonho de Sampaio é “continuar firme e forte” através do Instituto, para levar adiante o legado de Phillips. “Acredito muito nesse movimento educacional para mudar a consciência das pessoas”, diz. “O sonho é esse, conseguir através do instituto inspirar as pessoas para que elas tenham mais vínculo, mais afetividade, se entendam como natureza. A gente não está separado dela, a gente é parte dessa rede de vida”.
Mesmo em meio a toda dor e tristeza após a tragédia, ela diz que alguns fatos positivos realmente a tocaram, especialmente o recebimento de mensagens de crianças no Brasil e no exterior mencionando “tio Dom e tio Bruno como protetores da floresta” e como eles se tornaram símbolos de proteção da Amazônia. “Como isso impactou muitas crianças!”.
Phillips e Pereira foram mortos no Dia Mundial do Meio Ambiente. Sampaio diz que há um movimento nas escolas falando sobre “tio Dom e tio Bruno” como “guardiões” que morreram para defender essa causa. “Acho isso super bonito, e que marcou uma geração. A educação vem por esse caminho, que impactou tanto as crianças, e que a gente pode usar o nome do Dom e do Bruno também para trazer esse entendimento da importância da natureza, do que a gente está preservando, cuidando”.

Matos diz que seu sonho é que seus filhos cresçam “não muito traumatizados e felizes” e possam construir uma vida boa em um lugar agradável, em um ambiente melhor, com diversidade cultural e com a Amazônia em pé.
Ela diz que também sonha que seus filhos aprendam com os povos indígenas tanto quanto ela e Pereira aprenderam. Para ela, esse será o maior legado do pai, pois os filhos tinham apenas 2 e 3 anos de idade quando Pereira morreu. “Tudo que eles vão ter do pai é o que as outras pessoas falam, é o legado do trabalho dele”.
Ao trabalhar pelas terras indígenas e pelos povos indígenas, diz Matos, se está trabalhando pelo futuro do país. “Quando a gente trabalha para as terras indígenas, para os povos indígenas, eu estou trabalhando para o futuro dos meus filhos. Eu quero que eles cresçam em um lugar bom, com diversidade cultura”, diz. “Eu só quero o bem dos meus filhos. Mas o bem dos meus filhos eu entendo que está ligado a tudo isso”.
Segundo Matos, o MPI promoverá um evento em Brasília no dia 5 de junho, em parceria com o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, em homenagem a Phillips e Pereira.
Seguindo o sonho de Phillips, Sampaio diz que o principal objetivo do lançamento do livro e do instituto é dar esperança e tornar protagonistas as pessoas que vêm trabalhando há anos e desenvolvendo projetos incríveis para proteger a Amazônia. Ela se lembra das palavras de Phillips para ela: “Quando eu converso com algumas pessoas, elas já estão muito desesperançadas, como se não tivesse mais o que fazer. Então, abrem mão de se engajar no movimento de proteção porque acham que não tem mais jeito. E tem jeito. Todo mundo pode fazer alguma coisa. Todo mundo pode se comprometer de alguma forma”.
O livro foi finalizado depois de uma campanha de financiamento coletivo e trabalho colaborativo para escrita, revisão e tradução. Os co-autores abriram mão dos direitos autorais; toda a receita das vendas será destinada a Alessandra Sampaio.
Lançamento:
Reino Unido: 31 de maio a 5 de junho
EUA: 9 a 14 de junho
Brasil: 18 de junho, na Feira do Livro do Pacaembu, em São Paulo
Imagem de destaque: O jornalista britânico Dom Phillips entrevistando Mariana Tobias, do povo Macuxi, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, na Amazônia. Imagem © Nicoló Lanfranchi.
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Karla Mendes é repórter investigativa da Mongabay no Brasil e é membro do Rainforest Investigations Network do Pulitzer Center. Ela é a primeira brasileira e latinoamericanaeleita para a diretoria da Society of Environmental Journalists (SEJ), dos Estados Unidos, onde ela também foi eleita Vice-Presidenta de Diversidade, Equidade e Inclusão. Leia outras matérias publicadas por ela na Mongabay aqui. Encontre-a no Instagram,LinkedIn, Threads, 𝕏e Bluesky.
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