Os cidadãos da Pan-Amazônia têm uma queixa em comum: os políticos e burocratas que istram os assuntos do Estado não entendem suas necessidades nem se preocupam com suas aspirações. Essa queixa, que de forma alguma é exclusiva da Pan-Amazônia, está impulsionando uma dinâmica política nas economias emergentes conhecida como descentralização, que é um processo estruturado para transferir o poder político dos governos centrais para as jurisdições subnacionais. O objetivo é aumentar a participação dos cidadãos nas decisões que afetam diretamente suas vidas; nesse processo, também se pretende tornar mais eficiente a prestação de serviços públicos, que é a principal função do governo.
Todos os países da Pan-Amazônia têm três níveis de governo: nacional, regional e local.[1] O relacionamento entre as jurisdições baseia-se no conceito de subsidiariedade, no qual a entidade superior cede poderes e responsabilidades às entidades inferiores. A descentralização é especialmente importante na Pan-Amazônia, pois a região possui vastos recursos naturais e sua evolução social é claramente caótica. No ado, os recursos naturais da região foram saqueados para beneficiar potências coloniais, interesses corporativos ou pessoas conectadas politicamente, geralmente em detrimento das comunidades indígenas e tradicionais da região. Um processo mais democrático poderia ter evitado algumas das injustiças que caracterizam a história da Amazônia. No entanto, a dinâmica atual é complexa, pois a maioria dos habitantes é descendente de imigrantes recentes que dependem de sistemas convencionais de produção econômica (consulte o Capítulo 5). Entre eles, há muitos dedicados defensores do meio ambiente e dos direitos dos povos tradicionais e indígenas. Mas as elites ricas e os políticos eleitos estão profundamente implicados. Elas podem apoiar iniciativas de conservação e investir em iniciativas de desenvolvimento sustentável e, ao mesmo tempo, especular com terras, buscar uma produção não sustentável e promover projetos de infraestrutura mal aconselhados.
É claro que os habitantes da região devem ser consultados sobre os conteúdos das futuras políticas de desenvolvimento e devem estar intimamente envolvidos em sua implementação, mas a diversidade de interesses econômicos não garante que a descentralização favorecerá a conservação dos ecossistemas naturais da Pan-Amazônia

A República Federativa do Brasil
O Brasil é uma república federal com uma constituição que concede responsabilidades e poderes específicos a cada nível de governo; por definição e concepção, um estado federalizado é a forma mais pronunciada de descentralização. O governo federal desempenhou um papel predominante no desenvolvimento inicial da Amazônia, que era então uma região remota com uma economia primitiva, instituições fracas e população altamente dispersa. Quatro dos oito atuais estados eram territórios federais durante a maior parte do século XX, e só se tornaram estados na última metade desse século: Acre em 1962, Rondônia em 1982 e Amapá e Roraima em 1990. A Constituição de 1946 especificou que três por cento do orçamento nacional deveria ser investido na Amazônia Legal, o que tornou a região particularmente dependente do governo federal. Tal dependência foi exacerbada pelo governo militar, que centralizou o poder durante seus vinte anos de regime autocrático, durante os quais lançou políticas agressivas de colonização e desenvolvimento na Amazônia Legal.
Desde então, o poder foi transferido para os governos regionais e locais, que agora assumem a maior parte da responsabilidade pela prestação de serviços básicos. Aproximadamente 20% do PIB do Brasil é reado aos governos estaduais e municipais, o que representa cerca de metade dos gastos totais do governo e tornando-o a economia política mais descentralizada da América Latina. Além disso, o sistema é acompanhado por um processo orçamentário que rea a riqueza do Sudeste para o Norte e o Nordeste. Essencialmente, o governo federal coleta impostos e distribui fundos aos estados e municípios com base na população, com um viés adicional que favorece as regiões mais pobres do país.

O poder da bolsa
A maioria das transferências de receita é destinada a programas e direitos específicos, que foram estabelecidos pelo governo federal, mas são istrados pelas autoridades locais. Não há dúvida de que as autoridades locais apreciam a generosidade do governo federal, mas também anseiam por fontes autônomas de receita. Atualmente, a fonte de receita não centralizada mais importante é um imposto sobre valor agregado (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS) cobrado sobre transações envolvendo mercadorias e serviços, dos quais 25% são compartilhados com o município onde a transação ocorreu. Os impostos sobre a propriedade urbana são cobrados pelos municípios e são uma importante fonte de receita para cidades de médio e grande porte.
O ICMS-Ecológico é uma política de distribuição de impostos adotada por vários governos estaduais que vincula a distribuição do ICMS às políticas de conservação. A lei federal exige que os estados transfiram 25% da receita do ICMS para os municípios, mas permite certa margem de manobra na distribuição desses fundos entre os municípios. Aqueles que selecionaram a opção ICMS-Ecológico podem distribuir alguns fundos usando uma fórmula que recompensa os municípios com áreas protegidas relativamente grandes, terras indígenas ou reservas florestais dentro de propriedades privadas.
Um atributo incomum do sistema tributário brasileiro é o imposto sobre a propriedade rural (Imposto Territorial Rural – ITR). A Constituição de 1988 delega o ITR à Receita Federal do Brasil (RFB), mas estipula que 50% devem ser devolvidos ao município de origem. Uma modificação posterior permite que a RFB devolva 100% dessas receitas se o município concordar em atuar como coletor de impostos. Surpreendentemente, apenas 240 dos 814 municípios amazônicos estão participando do programa, e 132 deles estão em Mato Grosso. Embora esse fluxo de receita não seja grande atualmente, ele representa a maior fonte potencial de receitas independentes para os municípios amazônicos. Mais importante ainda, ele tem um enorme potencial como ferramenta de política fiscal para mudar as práticas de uso da terra, fornecendo possíveis incentivos fiscais para propriedades rurais que estejam em conformidade com o Código Florestal.

Exceções à regra
Apesar do compromisso do Brasil com a descentralização, há várias entidades federais que mantiveram poderes istrativos e regulatórios substanciais sobre os recursos naturais da Amazônia Legal. Isso inclui dois órgãos quase autônomos que supervisionam áreas protegidas federais (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio) e terras indígenas (Fundação Nacional dos Povos Indígenas – FUNAI), que juntos istram aproximadamente 41% da superfície da Amazônia Legal. Eles geralmente se aliam ao órgão de proteção ambiental (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA) e ao Ministério Público Federal (MPF) em disputas sobre a conveniência ou viabilidade de projetos de infraestrutura e desenvolvimento mineral.
Outro órgão federal com poderes istrativos e regulatórios que se sobrepõem à autoridade estadual é o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), que supervisiona a desapropriação de propriedades subutilizadas para redistribuição à população rural pobre. Entre suas funções regulatórias, o órgão também certifica títulos de terras rurais e é responsável pela compilação de um banco de dados nacional de propriedades rurais. Sua incapacidade de concluir essas duas tarefas – após mais de cinquenta anos de esforços – complicou enormemente o desenvolvimento ordenado da Amazônia Legal. A incerteza quanto à posse da terra é diretamente responsável pelo crime de grilagem de terras e é considerada por alguns analistas como o maior fator de desmatamento.
Em 2020, o governo Bolsonaro iniciou uma política para descentralizar as operações de campo do INCRA, delegando algumas de suas tarefas istrativas aos municípios. O programa Titula Brasil foi adotado por centenas de municípios para estabelecer Núcleos Municipais de Regularização Fundiária (NMRF) a fim de ajudar os proprietários de terras a compilar o portfólio de documentos exigidos pelo INCRA. O programa, que continua em vigor apesar da mudança de istração, ainda não acelerou a regularização da posse, em parte porque os escritórios regionais do órgão federal mantêm o controle sobre a certificação dos títulos. Em uma repetição do ado, o INCRA mais uma vez não alocou os necessários recursos financeiros, e tampouco o pessoal treinado, para resolver essa questão, que está no centro do desenvolvimento da Amazônia.
Imagem em destaque: Desmatamento em Corumbiara, no estado de Rondônia. Crédito: Rhett A. Butler.